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Ao contrário do que todos os dias pregam os seus ideólogos, a verdade é que, se quisermos olhar bem a realidade que nos rodeia, a forma como o capitalismo, em particular na sua fase financeira global, produz uma ideologia profundamente corrosiva do carácter das pessoas[1] e castradora da sua capacidade de reflexão crítica tem-se vindo a tornar cada vez mais evidente.
Na sua função de tratar de assegurar, o mais eficazmente possível, a reprodução das relações de trabalho assalariado, com obedientes e acríticos escravos modernos, que tudo aceitem fazer, pouco recebam e nada questionem, a ideologia capitalista proclama continuamente como valores supremos o dinheiro e o poder e como princípios essenciais os de que os fins justificam todos os meios, não há alternativa e a História chegou ao fim, eternizando para todos os tempos a sociedade capitalista!
Como consequência “lógica” e “natural” dessa sua função, a ideologia capitalista prega permanentemente a negação do esforço colectivo e da solidariedade e faz a apologia do individualismo extremo, procurando ensinar desde muito cedo às nossas crianças que se devem preocupar, não com os outros, mas antes com o seu próprio sucesso individual e que, para o atingir, são bons – porque eficazes no atingimento dos respectivos objectivos – todos os meios, desde o abandonar do amigo ou o espezinhar do “outro” (sempre apresentado como inimigo, a afastar sem dó nem piedade) até ao uso da batota e até da mentira e da infâmia como modos de remover e aniquilar quem se lhes atravesse no caminho.
Certas teorias da “gestão” e do progresso individual, com o endeusamento dos discursos chamados motivacionais e da falácia das soluções individuais, (ao estilo do “se te empenhares muito e fores suficientemente esperto para evitares os obstáculos e eliminares os adversários, serás tudo aquilo que tu quiseres ser”) são disso uma clara evidência. Tendendo à responsabilização de quem é, afinal, vítima de situações, como as de assédio moral, essas concepções desresponsabilizam os assediadores e agressores, bem como o sistema que, para “impor a ordem” contra os causadores de problemas (os troublemakers), necessita desse tipo de capatazes, responsabilizando as vítimas, apresentando-as como “fracas” e “incapazes” de corresponder ao que delas afinal se espera, ou seja, ao perfil de servo obediente e cumpridor.
É também essa mesma ideologia que conduz à imposição da “lógica de fábrica”, por exemplo, nas Escolas, assim transformadas em depósitos e refeitórios de crianças e, simultaneamente, em máquinas reprodutoras de futuros obedientes, acríticos e baratos trabalhadores, e que tem determinado um modelo de educação contra o qual os professores, justamente, se têm vindo a manifestar cada vez mais. Essa ideologia conduz também à progressiva precarização e proletarização dos trabalhadores do saber mais qualificado (de médicos e enfermeiros a arquitectos e engenheiros, por exemplo), sujeitos a especiosos e até maquiavélicos vínculos contratuais que, pela sua precariedade, podem ser feitos cessar a todo o momento, garantindo assim baixos salários e pouca ou nenhuma capacidade reivindicativa.
E se para atingir um determinado objectivo, apresentado como legítimo, vale afinal tudo, e se assim se esquecem os princípios mais básicos e se expulsam de todas as áreas da vida – inclusive do Direito e dos Tribunais[2] – as mais básicas preocupações da Ética e da Justiça, está desse modo consolidada a justificação teórica para os mais sórdidos e repugnantes comportamentos sociais e políticos.
“Bom” aluno na Escola, “bom” trabalhador na Empresa, “bom” quadro na Política ou na Sociedade é então aquele que não questiona nem critica, que aceita servil e acriticamente tudo o que lhe apresenta e lhe mandam fazer, ao mesmo tempo que se tolera ou até se elogia que ele consiga progredir à custa de esquecer e acotovelar os outros[3]. Assiste-se então ao caracterizar de quem ouse criticar ou simplesmente divergir desta avassaladora maré de oportunismo cívico, político e social, como alguém que é irrelevante ou até perigoso e ao elogio e apoio de tudo o que possa servir para o excluir e até erradicar, se não fisicamente, pelo menos através da mordaça ou inclusive de verdadeiros homicídios de carácter.
Procura assim tornar-se “normal” que, por exemplo, através de cirúrgicas (e nunca verdadeiramente investigadas) violações do segredo de justiça, se queime e se execute, de forma implacável, na praça pública adversários políticos, concorrentes profissionais ou simplesmente o “outro” de quem não se gosta. E a outra face desta miserável moeda, na ausência de princípios e com as condutas ditadas exclusivamente (e como tal muito elogiadas pelos “comentadores” de serviço…) pelo “pragmatismo” mais inaceitável, é o cuspir na nossa inteligência e o garantir da irresponsabilidade e da impunidade[4] daqueles que, tendo efectivamente cometido erros, e erros graves, no exercício de funções públicas, por exemplo, possam afinal safar-se por meio de subterfúgios e artimanhas como as da memória selectiva ou das oportunas amnésias (“eu não sabia” ou “eu não me lembro”) ou por meros “argumentos” de autoridade (“na minha posição, ou com a maioria que alcancei, não tenho que prestar contas a ninguém”).
É precisamente por isso que, frequentemente, os mesmos que fazem ataques sem princípios aos “outros” tendem a aceitar tranquilamente que os “nossos”, com toda a desfaçatez, possam mentir ou fingir não saber ou não se recordar daquilo que, escasso tempo antes, fizeram ou disseram, e que por isso mesmo bem conhecem.
E é neste campo que medram como cogumelos após as primeiras chuvas, em particular nas redes sociais e ao abrigo do estatuto de anonimato que elas propiciam, os chamados trolls, ou seja, os executores (amadores ou até mesmo profissionais pagos a peso de ouro) das tais operações de assassinato de carácter, atacando, com todo o tempo do mundo de que parecem sempre dispor, todos os que tenham ideias diferentes ou todos os que as ousem exprimir, executando a maioria das vezes tais ataques precisamente pelo método terrorista das “bocas” e dos boatos mais infamantes (“olha-me agora esta”; “este é uma criação do partido x”; “aquele está a fazer críticas ao valor dos vencimentos ou indemnizações pagas, por exemplo, na TAP, mas consta que tem um carro ou um barco de luxo”; “diz-se que só com favores chegou onde chegou”, etc., etc., etc.).
Frequentemente, as coisas são mesmo desenvolvidas de forma ainda mais profissional, mediante o uso de meios mais sofisticados como as “agências de comunicação”, as quais, a troco de chorudas avenças, garantem entrevistas de primeira página ou em horário nobre, bem como referências ou classificações fortemente elogiosas, ou, em alternativa, o “plantar” de pretensas notícias altamente desfavoráveis para o alvo escolhido[5].
E começa, de facto, a ser um autêntico nojo constatar que, sempre que há alguém que está a fazer críticas, a tomar posições, a dirigir lutas fora da capacidade de controlo do sistema e das suas instituições tradicionais (sejam elas partidos políticos, associações sindicais, organizações profissionais ou órgãos da “comunicação social” dita de referência), logo surja, por pretenso acaso, uma notícia, um processo, uma investigação ou simplesmente um rumor (“diz-se que”) altamente desfavorável e claramente sabotador do apoio que esse alguém possa estar a alcançar, a ponto de – horror dos horrores! – poder estar a pôr seriamente em causa o status quo existente e a tal pretensa inexistência de alternativas[6].
Ora, não é possível falar, nem muito menos tratar, da construção de uma sociedade verdadeiramente democrática sem combater, com toda a firmeza, esta vergonha, esta autêntica miséria moral e cívica, este verdadeiro império da infâmia, que praticamente todos reconhecem (em privado) mas que poucos se atrevem a criticar e a combater, muito menos publicamente.
E por isso impõe-se reafirmar – e lutar sem desfalecimento por essa reafirmação – que nada é eterno e imutável, que tudo pode ser modificado e melhorado, que nada de relevante se faz sozinho, que na vida e no mundo tudo se constrói com o outro e com os outros, que os princípios devem ser sempre respeitados (em todas as situações e sejam quem forem os nelas envolvidos) e que a crítica e o debate de ideias devem ser impulsionados e levados a cabo, por toda a parte e em todos os campos, mas que é pela valia dos respectivos argumentos que as ideias que se pretendem justas devem conseguir vencer e não por métodos administrativos e mesmo terroristas, como a censura, a discriminação, o homicídio de carácter ou até mesmo a censura e o saneamento, puros e duros. E também que o insulto e o ataque pessoal nada têm que ver com o exercício da liberdade, como igualmente nada têm de firmeza ou de coragem, antes sendo uma manifestação de inferioridade moral e de vil cobardia, devendo por isso ser absolutamente banidos de todos os aspectos da nossa vida.
E, sobretudo, e como sempre gosto de recordar e realçar, só a verdade é revolucionária e, por isso mesmo, quem tem de recorrer à manipulação, à mentira e à infâmia para se procurar afirmar, seja pessoal, profissional, social ou politicamente, não pode nem deve ter lugar numa sociedade verdadeiramente democrática e num mundo mais justo e mais correcto!
António Garcia Pereira
[1] O sociólogo americano Richard Sennet, no seu livro A corrosão do carácter – as consequências pessoais do capitalismo, com edição portuguesa da Terramar, demonstrou como o sistema capitalista, incentivando a permanente busca do máximo lucro, bem como a competição e o individualismo extremo, tem um efeito altamente corrosivo no carácter dos membros da sociedade.
[2] Na verdade, quando se classificam com “Muito Bom” e se promovem os magistrados que melhor trabalham para a estatística, mesmo que produzam as decisões mais bárbaras e injustas, é precisamente esta corrosiva noção de “sucesso” que se está afinal a consagrar.
[3] Mesmo na Escola de Formação dos Magistrados – o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) – quando há uns anos atrás se descobriu um “copianço” colectivo numa prova de exame, a primeira reacção da Direcção foi aprovar todos os candidatos (com 10 valores) e só perante a o escândalo público tratou de anular a prova. No Desporto, em particular no futebol profissional, onde circulam milhões, promove-se o sucesso e a esperteza do jogador ou da equipa que, pela simulação e pelo engano, consiga uma vantagem indevida e, com ela, a vitória.
[4] As impunidades, quer das execuções em praça pública, para deleite dos “justiceiros” e das massas ululantes, ávidas de espectáculo, quer dos “esquecimentos” e das falsidades mais descaradas são afinal, as faces da mesma moeda…
[5] E tudo isto sempre sem se averiguar como é possível, com que pessoas e com que meios e a troco de quê, um profissional ou uma agência de comunicação pode assumir tal tipo de compromissos e, pior, pode conseguir cumpri-los!
[6] A forma como foram discriminados, silenciados, atacados e excluídos todos os que ousam ter ideias diferentes das dominantes sobre, por exemplo, as medidas, nomeadamente legais e administrativas, de combate à pandemia, a guerra na Ucrânia e as posições da EU e do governo português ou as greves designadamente as dos professores, constitui uma terrível demonstração do que é a antítese de uma sociedade democrática esta que hoje vivemos.
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